… Nos documentos do Concílio Vaticano II
Este ano, mais precisamente no dia 11 de outubro, celebra-se os 50 anos do Concílio Vaticano II. É bom “revisitar” os textos que o Concílio produziu para haurir deles uma maior compreensão da Igreja e, consequentemente, crescer na fé de que nela subsiste a comunidade discípulos (as) e missionários (as) que Jesus congregou para anunciar a todos a Boa Nova da salvação. A Boa Nova é o próprio Jesus.
Entre todos os textos conciliares sobressai a constituição dogmática Lumen Gentium que trata precisamente da vida e missão da Igreja. A Igreja una, santa, católica e apostólica, querida por Jesus, subsiste nesta grande realidade que chamamos Igreja Católica Apostólica Romana… Assim, nós cremos. Mas, será que todos o creem? A partir da constatação de que muitos já não podiam crer mais, o concílio fez a opção de, sem se afastar nem um pouco do “depositum fidei”, convidar a toda Igreja a falar de si mesma de tal forma que as pessoas pudessem pelo menos se abrir mais diante desse grande mistério que é o próprio Jesus. Sem o quê não é possível compreender a Igreja, nem esta pode compreender a si mesma. A única verdade, que liberta e salva, é Jesus; É Ele o caminho que conduz ao Pai. Como? Antes e acima de tudo através da Igreja, pois, uma vez tornados Igreja pelo batismo, “não somos nós que vivemos; é o Cristo que vive em nós”, temos aqui o pensamento central da Lumen Gentium.
Em se tratando da dimensão dogmática, a Lumen Gentium é totalmente fiel à tradição eclesiológica da Igreja que já remonta ao primeiro milênio. Nada mudou no dogma da Igreja, sobretudo no que toca a sua constituição hierárquica. O que o concílio ensina na Lumen Gentium é que a hierarquia não é algo estático que paira imutável acima da Igreja, mas é algo que brota do próprio mistério da Igreja, povo de Deus, para o qual Jesus mesmo não deixa faltar os pastores. A hierarquia, portanto, não é uma elite de senhores que dominam em tudo e sobre todos; trata-se antes de pessoas que recebem “o mandato apostólico” de governar servindo. São os diversos ministérios, que são confiados a todos, inclusive, alguns deles confiados também a leigos e leigas. Daí surge a necessidade de realizar na Igreja uma grande transição. Transição de uma Igreja “sociedade perfeita e desigual”, no sentido de que nela há aqueles detém todo o poder, e aqueles a quem só é dado obedecer, para uma povo de Deus. Essa é uma opção central da Lumen Gentium. É o resgate da tradição que vem do primeiro (antigo) testamento; um povo que, entre todos os povos, vai progressivamente descobrindo que há um só Deus e que só a Ele vale a pena servir. Povo que Deus “descobre” como capaz de ser seu e que merece ser o destinatário da grande revelação: “vós sereis o meu povo e eu serei o vosso Deus”.
Deus começa a realizar o seu projeto de salvação e nele já está presente a Igreja. Em meio às vicissitudes de suas histórias, o povo vai sendo preparado para receber Aquele que realizará a nova e definitiva aliança. Deus quer salvar todos os povos e ao seu povo confia a missão de fazer brilhar para todos os povos uma nova luz que há de ser o seu próprio filho Jesus, que “existindo antes de todos os séculos”, irrompe na história humana exatamente no seio daquele povo que Deus escolheu. É aí que a Igreja vai encontrar sua verdadeira vocação de ser a continuação daquele povo, escolhido por Deus, do qual nasceu Jesus Cristo que é a verdadeira luz das nações. Encontramos, portanto, na Lumen Gentium não uma ruptura com o passado, com aquilo que a Igreja até então tinha compreendido e falado de si mesma, mas uma opção de fazer uma transição de uma linguagem por demais influenciada por preocupações institucionais, sociológicas, ideológicas e até políticas, para uma linguagem mais fiel a Sagrada Escritura, onde possa transparecer mais claramente o mistério da Igreja, que está no mundo não para ser contra ele, mas para procurar conduzir a Jesus e, assim, encontrar a salvação. A Igreja não está contra o mundo; este é que está quase sempre contra ela. Não obstante a isso, foi a este mundo que Jesus veio para salvá-lo e nele deixou a Igreja para continuar sua obra salvadora. Eis porque a Lumen Gentium mostra claramente a necessidade de se dar um “passo à frente”, como dizia o Papa João XXIII é nesse sentido que se fala de “transição”. Uma de suas grandes intuições foi exatamente convidar a Igreja a procurar ela mesma um novo caminho. De uma Igreja voltada para si mesma para uma Igreja voltada para Cristo. Ao atender a convocação do Papa, a Igreja se põe a caminho em busca de uma eclesiologia que, sem sacrificar o essencial, procurasse dar ênfase a aspectos igualmente essenciais, mas que nem sempre tinham sido ressaltados até então. Tais como, a dimensão trinitária, a dimensão “reino de Deus”, bem como a Igreja “mistério de salvação”. Igreja servidora, solidária com os pobres, são aspectos importantíssimos da eclesiologia resgatados na Lumen Gentium que está a merecer uma releitura atenta e aprofundada, tanto da parte daqueles que viveram o momento impactante do concílio, como, sobretudo, por parte das gerações que vieram depois e que são hoje a força viva da Igreja colocar tantas forças novas a serviço de um modelo de Igreja que já está superado, seria praticamente trair todo o projeto de Jesus.
Certamente faz um grande bem a todos descobrir na Lumen Gentium uma Igreja que, sempre mais voltada para Cristo se põe a caminho como peregrina, santa e pecadora, caminhando pelos caminhos da história, consciente de que pelos méritos da paixão do Senhor um dia será ela também sem manchas e sem rugas como a Virgem Maria que, na Lumen Gentium é apresentada na sua intrínseca relação com a Igreja, da qual ela é protótipo e modelo. Emerge assim do concílio, através da Lumen Gentium, uma eclesiologia na qual Maria tem papel importantíssimo, uma vez que, a partir do seu Sim ao chamado de Deus, deve ser vista também como discípula de Jesus. A eclesiologia conciliar é totalmente Cristocêntrica e desta centralidade de Cristo que emana a luz que ilumina também a mariologia. Tudo na vida de Maria está a serviço do projeto de Deus. Quando ela disse o seu Sim já se tornou protótipo de todos aqueles que ao longo dos séculos haveria também de dizer sim a Jesus Cristo. Ao dizer “eu sou a serva” Maria se fez mãe e modelo da Igreja servidora, assim a Lumen Gentium associa a Virgem Maria intimamente ao mistério da Igreja que nela, além de Jesus Cristo, encontra também uma luz a indicar os caminhos da missão.
Monsenhor Lino Duarte
Vigário geral da Arquidiocese de Olinda e Recife