Por ocasião do mês de Maio, mês dedicado a Virgem Maria, em Aparecida do Norte e especificamente nas dependências do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, ocorreu a 49ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, (4-13 de Maio de 2011). Deste acontecimento histórico para CNBB, não poderíamos deixar de lançar uma proposta, quem sabe, ousadamente profética: um novo olhar para os acontecimentos de Aparecida ocorridos em 1717 no Porto de Itaguaçu.

Estando a preparar um trabalho mariológico sobre «O sentido eclesiológico e mariológico de Nossa Senhora da Conceição Aparecida», concomitantemente recebemos, tempos atrás, a feliz notícia de que a CNBB irá instalar a partir de 2011 as suas Assembleias Gerais no Santuário Nacional de Aparecida. Não era de se esperar que um acontecimento de tão grande importância para a Igreja no Brasil, não fosse iluminado pelo passado histórico deste Santuário com cunho de investigação mariológica e eclesiológica.

Nas nossas pesquisas mariológicas, apercebemo-nos de que o encontro da imagem da Imaculada Conceição no rio Paraíba do Sul, encerra em si uma mensagem fortemente eclesiológica através de um aprofundamento mariologico, assim como uma mensagem de retorno às origens evangélicas e, à unidade eclesial e social de ontem e de hoje.

Contexto histórico e eclesial aparecidense

Todos os fatos que ocorreram em 1717 são, sem dúvida, uma proposta à Igreja daquela época e que perdura nos nossos dias, há uma ‘metanóia’, um retorno às origens, como aconteceu com são Francisco de Assis e com tantos outros instrumentos de Deus na história da Igreja. O séc. XVIII, conhecido como o ‘Século das Luzes’ todo ele foi um verdadeiro período de tormenta para a Igreja, fazendo com que esta se posicionasse e adequa-se à Idade Moderna com as suas mudanças e inovações na sociedade. Ideologias francesas (Iluminismo, Deísmo, Marxismo e a Maçonaria) e algumas formas de espiritualidade nocivas e não condizentes com os parâmetros doutrinais (o Jansenismo e o Quietismo) foram motivos para que a Igreja olhasse o mundo e suas mudanças com maior atenção e integração, procurando com os valores evangélicos iluminá-lo.

A França do séc. XVII-XVIII propôs ao mundo ideias novas (Iluminismo) que forçava a Igreja a reagir de um modo claro e categórico em defesa da fé e da moral propostas à luz do Evangelho. Seja o mundo intelectual (o Racionalismo) seja o político de então (o Galicanismo, o Absolutismo e o Josefismo), procuraram subjugar a Igreja querendo assim ofuscar a mensagem de Jesus Cristo na pessoa do Papa e da doutrina cristã em prol de interesses próprios.

É nessa situação que é encontrada a imagem de Nossa Senhora da Conceição nas águas do rio Paraíba do Sul por três simples pescadores. As figuras dos pescadores, as redes, o rio e os peixes, convidam-nos de imediato às cenas evangélicas do chamamento dos discípulos do Senhor à beira-mar (cf. Mc 1, 16-20; Mt 4, 18-22; Lc 5, 1-11), assim como há também o sinal da consolidação da Igreja logo após a ressurreição à beira do mar de Tiberíades (cf. Jo 21, 1-19). Vemos o início de um renovamento. Dos indícios desse acontecimento aurimos do “Documento de Aparecida” que, ‘todos somos chamados a partir da casa-da-mãe a sermos discípulos-missionários de Jesus Cristo’.

A Igreja dos finais do séc. XVII e todo o período do séc. XVIII vinha sendo constantemente atacada por forças hostis dos meios intelectuais e políticos, onde o papado não soube reagir apropriadamente, com raras exceções. Com a fragilidade pontifícia (o que queremos aqui dizer é que alguns papas foram eleitos por meio de interesses familiares e cercados por intrigas eclesiásticas) a Igreja viu-se submersa por graves situações que a deixou bastante enfraquecida.

Desse ambiente de trevas para a Igreja, surge luzes de esperança e consolação (cf. Mt 16, 18). Homens e mulheres voltados a um renovamento espiritual surgiram como sinal de esperança: Afonso Maria de Ligório (1697-1787), Luís Maria Grignion de Monfort (+ 1716), João Maria Batista Vianney (1786-1859), etc.

Ainda, nesse período, elementos doutrinais em prol da doutrina mariana foram aprovadas: como a estabilização litúrgica da festa da Imaculada Conceição pelo papa Clemente XI (1708), aprovação de associações e movimentos relacionados com o Rosário mariano. Em particular começou-se a promoção do processo de amadurecimento para o futuro dogma da Imaculada Conceição. Vemos que o fenômeno de Aparecida veio como que confirmar e incrementar todas essas iniciativas pontifícias. Porque? Por que a imagem faz referimento à Imaculada Conceição de Maria e, logo em seguida, ao achado da imagem o povo de Deus se reúne para a «reza do terço todos os sábados».

Aspectos eclesiológicos e mariológicos de Aparecida

Maria, como imagem da Igreja e como sua primeira representante, assume em Aparecida o seu papel de Mãe e membro mais excelente (cf. Agostinho: De sancta virginitate, in PL 40,397-400; Sermo XXV,7, De verbis Evangelii Matth. XII, in PL 46,938; Ruperto de Deutz: Commentarium in Iohannis Evangelium 12 [16, 21-22], in CCCM 9, 898-904, p. 685; PL 169,743-744). Tal analogia entre Maria e a Igreja sempre esteve presente na tradição da Igreja como o faz S. Ambrósio de Milão (cf. Liber de institutione virginis 1, XIV, in PL 16,326-327), ou ainda como S. Agostinho (cf. PL 46,938). É um convite para a Igreja de ontem e de hoje responder e perseverar como Maria no chamamento do Senhor. Os laços entre Maria e a Igreja são indissolúveis. A Igreja imita Maria na missão de cooperar na obra da salvação e Maria age como membro ativo a favor da Esposa do seu Filho, a Igreja, que é mãe e virgem como Ela. Não é isenta das dores do parto e da perseguição do Dragão (cf. Ap 12,1-6), tão bem experimentada ao longo da história.
É no período da primavera do hemisfério sul que a Virgem Imaculada é encontrada pelos pescadores, sinal de uma nova primavera para a Igreja do séc. XVIII e seu futuro. Contribui para este sinal a pesca milagrosa que corresponde à confirmação celeste do acolhimento e obediência ao chamamento do Senhor Jesus (cf. Lc 5,1-7; Jo 21,1s).

O aspecto simbólico-teológico de Aparecida resume-se num chamamento forte à unidade da Igreja e da sociedade do séc. XVIII e indica-nos um caminho perseverante para hoje.

As duas partes da imagem encontrada nas águas do rio Paraíba do Sul representam: o corpo = Igreja/Povo de Deus; a cabeça = Cristo/ o Papa, sintetizando todo o percurso magisterial.

A própria imagem da Imaculada Conceição Aparecida traz em si toda uma simbologia que faz referência a um chamamento de unidade e harmonia dirigido à Igreja e à sua missão no mundo.

A imagem da Virgem Imaculada tirada das águas turvas do rio indica-nos diversos pontos simbólicos. Recorda-nos o perigo do afundamento de Pedro/Igreja nas águas turbulentas do mar/mundo, mas socorrido pelo Senhor (cf. Mt 14, 22-33), assim como o renascer das águas do Batismo e Maria preservada do pecado original (tirada das águas: cf. 2Sm 22, 17; Pr 8, 24; Sl 17, 17; 103, 3) a imagem da Imaculada, está adornada com flores que correspondem à jovem/Maria/Igreja adornada para o seu Esposo (cf. Sl 45[44], 14-15); a imagem de mãos posta, sinal de convite a estar em oração, em unidade/harmonia; a Virgem Nossa Senhora/Igreja estando de pé é sinal de independência de qualquer interferência exterior, de dignidade e de autoridade/serviço; o sorriso nos lábios expressa-nos o rosto materno de Deus nas adversidades, a serenidade no combate e a esperança na vitória; os cabelos soltos, imagem da liberdade da Igreja na sua missão de evangelizar; na testa da imagem há três pingentes ou pérolas que nos indicam o mistério trinitário que rege a Igreja: está ao serviço do Pai, na obediência ao chamamento do Filho e é assistida pelo Espírito Santo; a lua debaixo dos pés é o tempo mutável; o anjo aos pés, Maria/Igreja é elevada a um estado sobrenatural pela graça de Deus ao serviço do mundo. A ausência da serpente na imagem da Imaculada, é substituída pela forma serpenteada do rio Paraíba do Sul, tendo assim uma visão completa e tradicional do simbolismo da Imaculada Conceição.

Por um aprofundamento teológico-antropológico

A cor da imagem, que é de um castanho brilhante, segundo os cientistas, nos recorda fortemente o texto do Ct 1, 5: «Sou morena, mas sou formosa». Em ótica patrística podemos recolher uma abundância de significado teológico-espiritual, mas que revela naquele momento do encontro da imagem a situação eclesial e social (escura, de difícil situação histórica) em que se estava verificando mas um alerta para o hoje. A beleza da Virgem Maria/Igreja se esconde e é o nosso dever fazer reaparecer no que toca à conversão de cada um de nós. Não encontramos pelo momento, um respaldo na questão dos escravos de outrora, ou em qualquer interpretação sócio-antropológico que hoje fazem questão de explorar em torno da imagem negra de Aparecida. Tudo está a indicar a um fator teológico e eclesial do momento (séc. XVIII). Sem desprezar é claro a uma realidade de injustiça social dos séculos passados – a escravatura – e mesmo porque, a imagem escura de Aparecida não é exclusividade do Brasil, pois existem cerca de 741 imagens de Nossa Senhora de cor escura espalhadas só na Europa (cf. www.nigrasum.it) datadas de séculos longínquos. Por falta de uma mariologia adequada se aplica no fenómeno de Aparecida a inculturação de Nossa Senhora de Guadalupe. Nos parece um tanto forçado e sem os devidos parâmetros histórico-teológico, pois o Espírito de Deus é dinâmico e não se repete na sua graça, assim o constatamos nas diversas mariofanias. Além do mais, porque a cor da Virgem em Aparecida deveria se referir exclusivamente a causa escravagista, se o sofrimento indígena a 500 anos é o mais crítico e injustiçado da história do Brasil? Por isso que nos orientamos a dizer que o verdadeiro rosto de NSCA se inspira no Cântico dos Cânticos (Ct), isto é, uma mensagem bíblico-profético, eclesiológico e mariológico. Pois o livro do Ct no passado fora aplicado seja a Igreja/Esposa de Cristo (povo de Deus), seja a Mãe do Senhor, modelo e tipo da Igreja.

Síntese conclusiva

Ora, a vinda da Assembléia Geral da CNBB para estabelecer-se no santuário de Aparecida a partir de Maio de 2011 é uma confirmação e sinal profético daquilo que a Virgem Maria já havia proposto em 1717. A unidade na Igreja e na sociedade de outrora e de hoje que há três séculos a Virgem havia feito o seu apelo, hoje em Aparecida está para ser demonstrado através desta bela iniciativa do episcopado brasileiro. Não estamos com isto a afirmar que antes desde evento o episcopado era desunido, ou a fazer qualquer outra afirmação nesta linha. De fato concretizar-se-á de modo claro que a Assembleia Geral da CNBB em Aparecida será o continuado apelo da Mãe celeste à Igreja e aos povos, será reforçado ainda mais na “Casa de Maria” com este sinal de colegialidade.

O encontro da imagem quebrada em duas partes: corpo e cabeça, parece inspirar, ao menos naquele período e quem sabe hoje a união e fidelidade a Pedro e ao seu ministério de serviço na caridade tão atribulado ontem e hoje. A Igreja no Brasil lendo os acontecimentos aparecidense nesse prisma, respirará sempre e ajudará aos homens e mulheres de boa vontade a assumirem o seu papel de servidores da Palavra e dos irmãos em uma contínua colegialidade.
Os acontecimentos dos séculos passados não são diferentes do século XXI, pelo contrário, eles deixaram os seus resquícios, onde tudo está sendo feito para se combater Cristo e a sua Igreja. Rege, porém, a promessa eterna e vitoriosa que é esperança e consolação do Senhor Jesus “as potências do inferno, não prevalecerão contra minha Igreja” (Mt 16, 18), pois é Ele que a sustenta, a socorre e a protege como aconteceu com a mulher do Ap 12, 1-6. Em Maria Imaculada, vitoriosa do pecado e da morte em Jesus Cristo, espelha-se a Igreja, isto é a todos os batizados.

Em Aparecida a Igreja no Brasil transmitirá a todos os homens de boa vontade um sinal de unidade e fidelidade sob o olhar vigilante da Mãe da Igreja, pois com Maria, sinal seguro de unidade e fidelidade à Palavra e à missão evangelizadora podemos estar seguros de cumprirmos o mandamento que Ela nos indicou: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5).

Aparecida deve ser para o Brasil e para o mundo o resumo do pensamento eclesiológico e mariológico de Cromácio de Aquiléia (+ 407): ‘Não há Igreja sem Maria’ [Sermão 30,1, in Sources Chrétiennes 164,135].

Seria muito oportuno e formativo, que trabalhos científicos aprofundassem os vários aspectos que acabamos de refletir para uma mariologia séria, bíblica, patrística e magisterial. Uma mariologia mais sadia e iluminante a fim de iluminar e assegurar cada vez mais a devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

Dom Rafael Maria F. da Silva, OSB
(Doutor em Teologia com especialização em Mariologia Pela Pontifícia Faculdade Teológica «Marianum» e com formação para Postulador para Causa dos Santos pela Congregação para Causa dos Santos)

rafaelmariaosb@hotmail.com