Quis o destino que minha maturidade profissional se integrasse à medicina na Santa Casa de Misericórdia do Recife (SCM). Essa venerável instituição de caridade compõe um sistema mundial de organizações patrocinado pela Igreja Católica, nascido em Portugal em 1498, quando a Rainha Dona Leonor inaugurou a primeira Santa Casa, no desejo de servir aos pobres e permitir que, como o Senhor, que curava enfermos, seus seguidores também o fizessem. Para mim, essa experiência se tem revelado uma redescoberta do fascínio pela medicina, aliado à responsabilidade pela população sem recursos, que busca a SCM, aqueles mesmos desvalidos que outrora se acercavam do Mestre, na esperança de que Ele os livrasse de seus males corporais. Quem der ao pobre, que dê do bom. Esse provérbio, mais do que um simples bordão popular, se transforma, nas consciências mais sensíveis, numa revelação do inexorável merecimento que os menos favorecidos detêm, ao permitirem que o seu tratamento mergulhe no sólido e inconfundível sentimento cristão da misericórdia.
É com o coração, primordialmente, que as Santas Casas escrevem sua própria história. É com os olhos voltados à nobreza do homem, cujo corpo é templo vivo do espírito de Deus, que servidores de todos os níveis se debruçam tanto sobre o mero desnível da pressão sanguínea, até à desafiadora missão cirúrgica do médico que abre o coração do irmão, para devolver-lhe a vida.
Misericórdia do Recife, sempre às voltas com a despesa maior do que a receita, com a procura maior do que a oferta. Sendo obra de Deus, por si só prosperou, como diz o Profeta. O desafio é sempre maior do que as possibilidades. A obra é sempre maior do que a vontade. Cardiologista experimentado, vejo-me na Santa Casa de Misericórdia do Recife chamado a exercer o maior dos sacerdócios: o de não deixar que a adversidade aniquile o homem.
Não há, ali, tempo ruim; não há, ali, privilégio econômico que classifique o paciente por sua conta bancária; não há, ali, tratamento forçadamente elegante que determine prioridade para pessoas mais financeiramente favorecidas. Essa, a grande revelação: o contato com o pobre, com o homem simples, com a mulher crédula que já esgotou todas as benzedeiras e meisinhas, com um jovem que sequer desconfia do que seja ser rico ou ser pobre, ser vivo ou ser morto. Gratifico-me, por isso. Parabenizo-me, eu mesmo, por fazer parte dessa plêiade.
Celebro o próximo aniversário de fundação da Santa Casa do Recife como o meu próprio aniversário de dedicação à Medicina. Credito aos companheiros da SCM o esforço de trabalhar em equipe, sem nenhuma dúvida, o principal tempero dessa caminhada cercada de sucesso, onde todos, unidos pelo mesmo ideal de servir, se desdobram e operam maravilhas.
Rezo para que meus netos vejam a Santa Casa em pé. Rezo para que os netos dos meus netos se orgulhem do esforço do velho trisavô, que, um dia, juntou sua força à força saudável de quantos entenderam o valor dessa Instituição. E me permito, ao final, não invocar as bênçãos dos céus para esse trabalho. Não, não preciso: para muitos, a verdadeira bênção do céu tem sido a de entrar aqui, sem cartão de recomendações, sem privilégio, abandonados à própria sorte, para depois sairem deambulando, melhorados ou mesmo sarados, prontos para o recomeço. Esta Casa é, ela própria, uma bêncão dos céus.
Hilton Chaves
é cardiologista e Coordenador-médico da UTI do Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Recife