A paz não é simples fruto de acordos políticos sazonais
Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo*
“A paz é um dom de Deus e ao mesmo tempo um projeto a realizar, nunca totalmente cumprido”, diz o Papa Bento XVI na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, celebrado pela 25ª vez no dia primeiro de janeiro deste ano. A conquista da paz inclui os percursos dos diálogos todos, em diferentes níveis, as providências estratégicas de gestões inteligentes e eficazes, com entendimentos políticos adequados, e a indispensável consciência cidadã sustentada pelos valores morais que asseguram a configuração de um tecido social justo e solidário.
Ao afirmar que a paz é um dom de Deus, o Papa indica que uma sociedade reconciliada com Deus está mais perto da paz. Essa reconciliação afronta, entre outros desafios, o da indiferença religiosa, suscitando por um lado afirmações, condutas e linguagens que prescindem de Deus. Mas também indica, por outro lado, o enorme desafio da intolerância religiosa que tem comprometido o valor da liberdade, gerando cenários sangrentos e violentos em muitos lugares, particularmente na Ásia e na África.
O Santo Padre sublinha que a paz é o resultado de um processo de purificação e elevação cultural, moral e espiritual de cada pessoa, de cada povo, no qual a dignidade humana é plenamente respeitada. Esse percurso e a forma para se alcançar essa meta supõem mais do que a inteligência humana, que pode perder também o seu rumo e se desvirtuar, na contramão da lucidez própria na geração do bem. A paz não é simples fruto de acordos políticos sazonais, tampouco de interesses nas esferas econômicas, estratégicas e tecnológicas. Ela é um valor moral. Sua sustentabilidade enraíza-se na experiência religiosa, na fé professada e testemunhada por indivíduos e também por povos de diferentes culturas, com resultados inquestionáveis na sua configuração. Trata-se da experiência religiosa na vivência confessional da fé. As armas morais, por isso mesmo, são as mais preciosas para que haja paz. Nesse âmbito, sabe-se o quanto o mundo tem necessidade de valores éticos e espirituais. É um mundo que necessita muito de Deus.
A religião, também, lembra o Sumo Pontífice, pode oferecer contribuição preciosa na busca e na construção de uma ordem social justa e pacífica. Nesse horizonte sua mensagem trata o tema da liberdade religiosa como caminho para a paz. Toda pessoa na sua experiência de fé tem o direito intocável do respeito à liberdade religiosa. Nessa experiência é que a pessoa orienta a própria vida, pessoal e social, para Deus, assegura o Papa. E tem, pela luz da presença divina, a capacidade de compreender plenamente a sua identidade, sua liberdade e seu destino. Afirma, ainda, que negar ou limitar arbitrariamente a liberdade religiosa significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana, e esse obscurecimento da função pública da religião gera uma sociedade injusta, em razão de ser desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa.
A reflexão feita por Sua Santidade parte, pois, da compreensão e do reconhecimento da dupla dimensão na unidade da pessoa humana: a religiosa e a social. Considerar apenas a essencialidade da dimensão social é mutilar o sentido da indivisível unidade e integridade da pessoa. A desconsideração, portanto, da dimensão religiosa é abertura para o risco de admitir ser possível encontrar no relativismo moral a chave para uma convivência pacífica. Concretamente, aí nascem a divisão e os riscos graves de negação da dignidade dos seres humanos.
O Papa Bento XVI afirma, então, que a abertura à verdade e ao bem, a abertura a Deus, radicada na natureza humana, confere total dignidade a cada um dos seres humanos e é garantia do respeito pleno e recíproco entre as pessoas. Portanto, não se pode buscar a paz prescindindo da dignidade transcendente da pessoa enquanto valor essencial. O entendimento pauta-se no quanto é importante e indispensável ter capacidade de transcender a própria materialidade e buscar a verdade. Essa faculdade é indispensável na construção de uma sociedade orientada para a realização e a plenitude da pessoa.
O caminho para a paz, pois, situa a religião na sua dimensão pública. Esse seu lugar – de grandeza compartilhada – confronta-se com importantes aspectos no conjunto da vida da sociedade, ultrapassando o estritamente individual. Há um importante confronto com o sentido da laicidade positiva do Estado, desafiando a superação dos riscos dos laicismos. Desafia também os fundamentalismos originados no próprio campo das religiões e outras escolhas. São muitos, ainda, os desafios no caminho para a paz.
*Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte