Falar de “devoção ao Sagrado Coração de Jesus” reporta-nos ao tema da Religiosidade Popular. Não em termos depreciativos, mas de enriquecimento como nos recorda a Conferência de Aparecida, na medida em que esta secular espiritualidade tem ajudado a alimentar a fé de tantos antepassados e contemporâneos nossos. Quantas de nossas mães e avós não pertenceram ao Apostolado da Oração, associação laical propagadora desta devoção! Esses irmãos têm deveres, mas também direitos na Igreja de Cristo, como o de receberem a devida formação postulada pela citada Conferência de 2007. Ao referir-se à “Piedade Popular” afirma que ela é “imprescindível ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda” (DA, nº 262). Afirma ainda que, muitas vezes, “é necessário evangelizá-la e purificá-la”. No mês de junho costuma-se celebrar o Coração de Jesus. Nessa perspectiva verifica-se a necessidade de oferecer uma formação mais teológica, cristológica e eclesiológica sobre o tema. A fundamentação bíblica é imprescindível.
O termo “coração” vem expresso inúmeras vezes no AT e no NT aplicando-o não só ao homem, mas ao próprio Deus, em seu sentido simbólico. O Deus revelado aos hebreus não é um Deus frio, desalmado, castigador, mas um Deus, por exemplo, cujo “coração se remove e se comove de dó e compaixão” por Efraim, a tribo rebelde (Os. 11,8). O termo na Bíblia tem um valor simbólico, expressando não apenas o físico e sensível, mas a unidade física, psicológica e espiritual do ser humano como elemento unificador da multiplicidade de suas facetas. É a sua parte mais profunda como ser ético, a sede do diálogo com o Criador e de onde dá sua resposta livre. Este antropomorfismo bíblico leva o cristão a voltar-se para Deus tal como Ele revelou-se – “Deus é Amor” (1 Jo 4,16) – cujas prerrogativas mais manifestas são a Misericórdia (hesed) e a Fidelidade. Em Cristo, imagem do Pai, estas se revelaram de maneira plena. “Jesus Cristo veio revelar ao homem – diz a Gaudium et Spes – o mistério do homem”. Trata-se não apenas de sua palavra, mas de tudo o que Ele foi e realizou pela salvação do homem revelando-nos, assim, a verdade e a essência de todo ser humano.
No pretório Pilatos sintetizou, involuntariamente, esta verdade ao apresentá-lo “Eis o Homem”. Logo, a verdade por Ele revelada é a de que o homem é um ser carente de Deus, sintetizada por S. Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, ó Deus, e o nosso coração estará sempre inquieto e agitado enquanto não repousar em Ti.” A plenitude desta revelação em Cristo é mais perfeita do que a do AT. O novo Nome de Deus já não é apenas Javé, Adonai, Elohim, El Shaddai, mas ABBAH, isto é, “Painho”, apelativo empregado apenas na relação familiar e jamais para Deus. No NT o próprio Cristo aponta seu coração como uma escola de mansidão e humildade: “Aprendei de mim…” Os santos logo foram percebendo, ao longo da história da Igreja, o valor deste simbolismo. Mas, foi somente no sec. XVII que se tornou uma espiritualidade universal. A heresia do Jansenismo havia trocado essa ternura e compaixão de Deus por um cristianismo rigoroso. É quando uma humilde freira na França, Irmã Margarida Maria de Alacoque, tem revelações místicas nas quais recebe a missão profética de anunciar a misericórdia de Deus através do Coração humano de Jesus: “Eis o coração que tanto amou os homens…”, diz-lhe. E a Igreja deu-lhe credibilidade beatificando-a e, por fim, canonizando-a.
Karl Rahner lembra que “é uma devoção muito simples, bastando invocar o Senhor em seu coração; buscá-lo e amá-lo com os olhos postos em seu coração”. Os últimos Papas – Pio XII, Paulo VI, João Paulo II – escreveram encíclicas sobre o tema. O Beato João Paulo criou o termo “Nova Evangelização”, como uma necessidade pastoral de re-evangelizar a cristandade e o mundo. E esta devoção bem que poderá ser um meio eficaz para tal, se purificada pela Palavra de Deus e, talvez, libertada de uma roupagem iconográfica ultrapassada ou de uma linguagem que não seja mais significativa para o cristão hodierno. O Documento de Aparecida não cita explicitamente esta espiritualidade, mas a supõe quando afirma “conhecer Jesus é o melhor presente que alguém possa receber; tê-lo encontrado é o melhor que nos aconteceu na vida. E dá-lo a conhecer pela palavra e atos é nossa maior alegria” (n.29).
Pe. Expedito Miguel do Nascimento, S.J.
Administrador da Paróquia Nossa Senhora dos Remédios – Recife