Por Padre Miguel Martins, sj*



Gostaria de começar esta reflexão com um conhecido poema de João Cabral de Melo Neto:

Tecendo a Manhã


“Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão”.


A luz do poema de João Cabral, luz-manhã, luz-toldo onde cabem todos, tecida pelo canto dos galos, é para mim metáfora generosa nesta manhã.

Acabamos de celebrar o Natal em nossas comunidades. Ainda nos aquece o coração a experiência da contemplação do Mistério que celebramos na noite de Natal: o encontro entre o desejo de Deus e o desejo da humanidade. Este é mesmo um tempo favorável para acolher a boa notícia de que “Ele está no meio de nós”, “invisível em sua divindade fez-se visível em nossa carne”.

Nesta manhã encontramo-nos, o clero da Arquidiocese de Olinda e Recife, como comunidade de homens que desejam entregar-se cotidianamente ao serviço do Mistério, ao serviço do Amor deste Deus que se coloca, Menino, nos braços da humanidade. Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, nos convida a contemplar o nascimento de Jesus, colocando-nos na cena do mistério como “um pobre criadinho indigno” que se põe a serviço de Maria, José e de Jesus, “com todo acatamento e reverência”. Assim, chamados a ser humildes servidores do Mistério, tomamos o Menino Santo nos braços. E o que experimentamos, embalando este Menino, cantando para ele dormir? Uma intensa sensação de paz. Mais do que nos sentirmos bem, sentimo-nos bons. É isso: o Menino Deus vem nos ensinar a cuidar. Vem nos lembrar que somos, sim, belos e bons, verdade que o mundo insiste em negar, ao inocular em nós o veneno do pessimismo, distanciando-nos dos nossos mais genuínos desejos de generosidade, justiça, verdade, beleza e santidade. Fazendo com que a imagem e semelhança de Deus – que somos! – vá desbotando em nós. A experiência do Natal vem restaurar em nós aquilo que somos chamados a ser no desejo do próprio Deus: o Menino Jesus vem nos lembrar que divino é ser humano. Deus nos quer humanos. Por isso planta em nós o desejo de comunhão com Ele, a sede e a fome que nos faz peregrinar, inquietos, buscando o sentido de tudo. Sentido que os pastores e os magos encontraram na manjedoura de Belém.

No Natal, somos convidados a sonhar de novo, a renovar a esperança de que é possível sim, transformar a realidade. É possível recriar o mundo, o ser humano, à luz do que nos revela Jesus. Na liturgia da Missa do Natal, a leitura do Prólogo de João nos inspira a buscar o começo, a contemplar a Palavra, que estava no princípio de tudo, que estava voltada para Deus, que era Deus. O tempo do Natal é tempo de aguçar os ouvidos para deixar que a Palavra, esta original, criadora, fecunda, penetre os nossos corações e nos re-faça, mais humanos, mais divinos.

Estamos no ano do centenário de nossa Arquidiocese. Tempo de celebrar as maravilhas que fez em nós o Senhor. Tempo de visitar a memória, a história que tece o nosso ser como Igreja local, ao mesmo tempo em que, debruçando-nos sobre o presente de nossas ações, projetamos o futuro do nosso trabalho como “discípulos e missionários” do Cristo. Como discípulos, ouvir, aprender a Palavra. Como missionários, pregar, repercutir a Palavra. Pegar a semente da Palavra e semeá-la nos corações (como os galos, “tecendo a manhã”, no poema de João Cabral), para que o mundo creia que somos criados para brilhar, servindo à glória de Deus, que é a vida do ser humano. Para que nossas palavras estejam prenhes da Palavra, para que nosso discurso encontre consistência, para que o nosso testemunho seja digno de crédito. Para isso, é necessário cultivar a intimidade, a sintonia com Deus no cotidiano. Para poder escutar o que ele deseja, para afinar nosso desejo com o desejo dele. Assim não sucumbimos à tentação dos discursos ocos e sem sentido. Assim, nosso testemunho não se perderá no labirinto dos milhões de imagens e palavras que, no mundo, nos afastam do essencial. Assim não nos perdemos no emaranhado de nossos desejos embriagados por uma visão equivocada de felicidade a qualquer preço, pautada mais por nossos próprios caprichos do que pelas reais necessidades, nossas e dos demais.

“A Palavra se fez carne e veio morar entre nós”. (Jo 1,14)

Contemplando a Palavra, que se faz carne, deixemo-nos plasmar por ela. Que ela, a Palavra, modele nossos desejos. Seja, além de princípio criador, princípio que rege e governa nossos desejos e ações. Digamos como Maria: faça-se segundo a tua Palavra. Ou como Simão, o pescador, que mesmo depois da labuta de toda uma noite em vão, lança as redes, confiando da Palavra do Mestre. Somos chamados a viver segundo a Palavra, organizar a vida e o trabalho segundo a Palavra. Para tanto, devemos abrir-nos ao diálogo frutífero com a realidade, com os outros. Cultivar o hábito da escuta, tão raro em tempos tão barulhentos. Para deixar que no silêncio a Palavra fecunde o nosso ser de homens a serviço do Mistério.

Começamos o ano de 2010 com a Assembléia da nossa Arquidiocese inspirados exatamente neste versículo do evangelho de Lucas: “Por causa de tua palavra, lançarei as redes”(Lc 5,5). Sentimo-nos movidos pelo desejo de que o trabalho pastoral em nossa Igreja tenha como princípio e critério a Palavra. Definidas as prioridades, avançamos, crescemos em nossa organização como Igreja particular. Entre as prioridades, destacamos a formação bíblica, espiritual e missionária. Do Povo de Deus e também do clero. A opção de Dom Fernando, junto com outros bispos do regional, de confiar à Universidade Católica de Pernambuco a formação filosófica e teológica dos seminaristas, marcou de forma decisiva o início do seu trabalho pastoral. Como Simão, ele arriscou. E hoje, transcorrido um ano de trabalho pautado numa colaboração estreita e no diálogo constante, franco e fecundo entre a universidade, os bispos, os formadores, já podemos perceber os bons frutos da colheita. Demos graças a Deus, que abre os nossos corações aos movimentos do seu Espírito, vento criador que nos faz criativos, que sopra onde quer e provoca em nós a capacidade de, escutando os sinais dos tempos, ir tomando decisões que nos tornam capazes de responder aos desafios que a realidade atual da Igreja e da sociedade nos apresenta.

A nossa Igreja celebra e vive estes 100 anos de sua história como um kairós, um tempo favorável à redescoberta do dom, da graça da Palavra, aquela que cria, recria e sustenta o nosso trabalho pastoral e missionário, sendo luz e critério de nossas ações. Por causa da Palavra, aquela que se fez carne e veio morar entre nós, seguimos renovados na esperança e na convicção de que de que “tecemos juntos as manhãs”, como no poema de João Cabral. E avançamos, revigorados pela experiência da contemplação do Menino Deus, deixando ecoar em nossos corações o poema do outro João, o do Evangelho: “A luz brilha nas trevas”… “Nós vimos a sua glória”… “Da plenitude da Palavra todos nós recebemos graça por graça”.


*Padre Miguel Martins, sj, é pró-reitor Comunitário da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e provincial eleito da Província dos Jesuítas Brasil Nordeste (BNE)

(Reflexão lida durante a Confraternização do Clero da Arquidiocese de Olinda e Recife)